Em nome da competência para trabalhar uma cepa difícil, a identidade do terroir uruguaio se afirmou.

Dando sequência à análise da evolução da vitivinicultura uruguaia, nas últimas décadas do século 20, a exemplo de outros países da América do Sul, o Uruguai teve que promover reformas no seu processo de produção, à medida que o mercado mundial foi se reorganizando em blocos continentais, com políticas que favoreciam as trocas comerciais e suas oportunidades, mas que colocavam em xeque a competência de vinhos de grande volume e baixa qualidade.

As reformas empreendidas nos processos de produção de vinhos ocorreram em nível mundial e cada vez mais rápido à medida que este mercado se globalizou e se tornou mais competitivo. Na América do Sul, os protagonismos do Chile e da Argentina serviram de exemplo para países como o Brasil e o Uruguai, mas também pressionaram as produções vizinhas a empreenderem rápidas mudanças, a fim de não perderem seus mercados domésticos, especialmente com a maior oferta de vinhos argentinos e chilenos, facilitadas pelo Mercosul.

A reconversão vitivinícola, como é denominado este processo, teve início na década de 1980 no Uruguai e envolveu mudanças nas castas utilizadas, nos métodos de condução dos vinhedos e nas tecnologias de produção. Isso exigiu investimentos e reduziu, desde então, o número de produtores. Algumas bodegas mais longevas, descendentes dos imigrantes inaugurais, começaram seus negócios na primeira metade do século 20 e foram adaptando suas produções. Outras, fundadas no período da transformação, tiveram o apoio de alguns personagens fundamentais, como eu já dizia no último artigo.

Um deles foi Reinaldo de Lucca, proprietário da Bodega De Lucca (Canelones), que foi estudar em Montpellier (França) e importou melhores clones da Tannat, fundando um viveiro de uvas, que serviu de reservatório para muitos produtores. Reinaldo continua sendo uma importante referência em enologia no país.

Outra personalidade é Francisco Carrau, PhD em Química, especialista no estudo das leveduras para a fermentação alcoólica e professor de Enologia da Escola de Vitivinicultura Tomas Berreta. É muito comum conversarmos com enólogos proprietários de vinícolas uruguaias que foram alunos dele.

Referência de empreendedorismo foi Fernando Deicas, que adquiriu o Establecimiento Juanicó em 1976 e fundou um dos mais bem-sucedidos negócios vitivinícolas do país – desde a linha mais simples, Don Pascual, ao ícone de qualidade premium, Preludio.

Fim dos anos 1990, início dos anos 2000, o mundo começou a conhecer vinhos premium uruguaios desses e de outros produtores, como das bodegas Pizzorno, Pisano, Toscanini, Marichal, Gimenez. Inicialmente, Uruguai significava Tannat. A assinatura Tannat, de certo modo, encontrava um lugar ainda pouco explorado no mundo dos vinhos para o país. Além disso, Tannat, sendo uma cepa cuja marca mais notável é o alto teor de taninos, de certo modo remetia à ideia do autêntico homem dos pampas – forte, rústico, carnívoro por excelência.

Os irmãos Pisano, liderados pelo carismático Daniel Pisano, exploraram e ainda exploram muito bem essa ideia de uma produção que carrega uma identidade própria, proveniente dessa fusão entre as origens europeias reencarnadas em território latino-americano.

Escutei em um podcast de um sommelier uruguaio (e achei interessante) a versão de que eles teriam mais tolerância ao amargor dos taninos pelo alto consumo de chimarrão. Se, por um lado, o Tannat se funde com a imagem do gaucho uruguayo, a ideia que foi trabalhada em relação ao Tannat nacional era de que o vinho dali seria a melhor elaboração da cepa, uma vez que, em sua origem (Madiran, França), o vinho era muito tânico e difícil de ser consumido.

Versões à parte, o fato é que os avanços da enologia mostram que, para além das questões climáticas, que tornam a Tannat uma boa opção para essas regiões, hoje já se sabe trabalhar melhor a cepa, de forma a gerar vinhos prontos mais jovens, com taninos de boa qualidade e capacidade de expressar frutas, aromas e elegância – seja no Uruguai ou na França.

A despeito dessa constatação, a Tannat dá uma estrutura mais pungente aos vinhos, isso é fato, e reduzir uma vinicultura à sua imagem poderia ser um fator limitador, num mundo que se pauta pela multiplicação de experiências. As novas gerações de vinhos que começaram a brotar de vários empreendimentos nascidos a partir dos anos 2000 e que também influenciam vinícolas mais tradicionais foram em busca de outras cepas para ampliar a carta de vinhos uruguaia.

O Tannat é carro-chefe sempre, mas, para a alegria de pessoas como eu, que gosta de frescor e finesse nos vinhos, nem só de mate e carne vive o uruguaio, mas da brisa fresca do mar, que combina com outras taças. Falaremos das novas gerações no próximo artigo.

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