A ancestralidade da bebida teve como grande aliado as doutrinas religiosas que disciplinavam o seu consumo

Para encontrar a vinícola mais antiga do mundo, deixe a capital da Armênia, Yerevan, para trás, à sombra do iminente Monte Ararat, e dirija rápido por duas horas para sudoeste (…) depois de um tempo, após uma área quase desértica, um pequeno oásis verde se abrirá à sua frente: um aglomerado de pomares, vinhedos e colmeias, todos animados por um rio estreito e agitado que parece brotar do nada. No centro deste posto agrícola solitário fica a aldeia de Areni (…) embora a aldeia em si seja tão obscura quanto minúscula, o seu nome não o é.

A Natural History of Wine – Ian Tattersall, Rob Desalle

Esses são alguns trechos do livro A Natural History of Wine (Ian Tattersall, Rob Desalle), que fala de uma visita a uma das rotas mais antigas do vinho, na Armênia. O Monte Ararat é aquele presente nos relatos bíblicos, onde a Arca de Noé teria atracado após o grande dilúvio, trazendo consigo um pé de videira que inauguraria uma nova era. A aldeia de Areni produz até hoje um vinho armeno muito tradicional e considerado dentre os melhores nacionais, feito de uma uva que ganhou o mesmo nome.

A história do vinho é muito antiga e não cessa de mostrar indícios de que pode ser muito mais longeva, à medida que seja possível reunir provas incontestáveis de sua existência, o que não é tão simples, pois deve envolver dados arqueológicos contundentes, cruzados com outras evidências culturais.

Hoje, o registro científico mais antigo de produção de vinhos data de 8 mil anos atrás, na atual Geórgia, região do Grande Cáucaso. Mas a uva que, por si só, poderia dar origem a um vinho acidentalmente – uma vez que é portadora de um suco diretamente fermentável pela ação de leveduras naturais – já habitaria a terra muito tempo antes. As vinhas selvagens surgiram muito antes da humanidade e ainda são representadas na Europa pela Vitis vinifera subespécie sylvestris, particularmente nas florestas inundadas do Reno.

A viticultura domesticada, entretanto, só foi possível a partir de 10.000 a.C., ou seja, há cerca de 12 mil anos, no período Neolítico, quando várias transformações climáticas criaram condições favoráveis para a prática da agricultura e criação de animais. E a produção de vinhos em si demandou o desenvolvimento de técnicas e artefatos para a sua elaboração, armazenamento e guarda. Demandou também condições culturais e ideológicas que favorecessem a sua permanência e expansão. Quanto mais antigas as referências, anteriores ao desenvolvimento da ciência em seu arcabouço racional, mais a humanidade fundamentou as suas práticas por outros sistemas de ideias, como a moral e sua íntima conexão com as doutrinas religiosas.

Em se tratando, então, de uma bebida alcoólica, com efeitos fisiológicos que podem alterar o comportamento, a sua aceitação social sempre passou por questionamentos e limitações na liberalidade, tendo sido interditada em alguns lugares e momentos, junto com os demais álcoois. O seu pertencimento a rituais culturais e a prescrição para um consumo moderado são elementos que legitimaram essa liberalidade ao longo do tempo, por muito tempo fundidos com o discurso religioso.

Dentre as bebidas alcoólicas, o vinho foi a que mais criou uma aliança com a religiosidade – uma aliança cultural e espiritual. Nas tradições grega e romana, o consumo de quantidades fartas de vinho foi associado aos cultos de Dionísio (nome grego) e Baco (nome romano), deuses de perfil bem hedonista.

O deus do vinho era uma espécie de semideus, uma vez que filho de Zeus com uma mortal, Semele. De certo modo, essa condição “quase-espiritual” do deus era metaforizada pelo efeito do consumo da bebida que representa. Se ingerida com moderação, era um bom estimulante intelectual, inspirando, por exemplo, os Symposia na Grécia antiga (encontros festivos após banquetes, regados a vinho com dança, música, recitais e debates). Se ingerido de forma abusiva, poderia provocar descontrole, violência, como sugerem os atos dionisíacos encenados na tragédia do dramaturgo grego Eurípides, As Bacantes. A trama fala de uma vingança de Dionísio, jamais reconhecido pela família como um deus autêntico, por meio de um ritual de êxtase, envolvendo suas ninfas seguidoras, chamadas de bacantes ou mênades.

Junto à comunidade judaica, o vinho era considerado uma bênção dada por Deus, quando consumido com moderação, tanto que o primeiro ato de Noé, ao desembarcar da arca, foi plantar uma vinha. Seguimos, no próximo artigo, falando das demais conexões entre vinho e religião.

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