A Grenache e a Syrah imperam em áreas distintas do Rhône, mas o que conta é a DOC

Acabo de voltar da região do Vale do Rhône, sudeste da França, onde eu guiei um grupo de enoturismo pela Associação Brasileira de Sommeliers, do Rio de Janeiro. O Rhône, como um todo, é conhecido mais pelos vinhos tintos, que perfazem cerca de75% de sua produção. Cruzado em boa parte de sua extensão pelo Rio Rhône, que nasce nos Alpes suíços e deságua no Mar Mediterrâneo, a região poderia ser subdividida em duas áreas, com certas semelhanças, mas particularidades expressivas: Rhône Norte e Sul.

A região consagrou o corte GSM, representado pela mistura de três castas principais: Grenache, Syrah e Mourvèdre – que também vem sendo reproduzido em outras produções mundiais. Os cortes ou blend de uvas são praticados em muitas regiões. Trata-se de uma concepção que busca equilibrar o produto com perfis diferenciados de uvas, que podem se complementar, balanceando mais o vinho.

A Grenache é uma cepa que apresenta grande potencial alcoólico, mas faz vinhos de cor, taninos e acidez mais moderados, enquanto a Syrah, ao contrário, apresenta grande concentração de cor, tanino e boa acidez, e a Mourvèdre tem ótima estrutura tânica e cor concentrada, mas com menor acidez. Elas se complementam ainda quanto aos aromas: a Grenache traz bastante fruta vermelha, a Syrah segue mais na linha dos frutos negros e especiarias, e a Mourvèdre traz toques mais defumados e animais.

Há, no entanto, uma primazia significativa da Grenache nos vinhos do Rhône Sul, já que ela perfaz mais de 70% da superfície de vinhedos e, em alguns vinhos, apresenta uma proporção que, certamente, em produções mais modernas, poderia ser rotulada como um vinho varietal da Grenache.

Isso porque no universo dos países de vitivinicultura mais recente, há uma grande tendência a se privilegiar a rotulagem que identifica os vinhos pela sua uva majoritária. Neste caso, as regulamentações permitem que quando a mesma uva representa acima de 80% (em alguns locais, 75%) dos cortes, ela possa ser citada no rótulo como varietal. Isto é, a citação sugere que o vinho é apenas daquela variedade de uva, mas pode ser que ele tenha 100% ou menos.

Já no contexto das regiões produtivas mais tradicionais, a Denominação de Origem é que determina o estilo do vinho para o consumidor, mais do que a cepa. Um vinho de corte GSM que apresente as mesmas proporções de uvas em seus cortes será identificado apenas pela sua DOC, sem menção das cepas. O que conta não é apenas a uva, mas outros elementos que condicionam os vinhedos e os modos de produção locais, regulamentados pelas denominações de origem.

barrica do chateauneuf-du-pape, onde DOC manda mais que corte GSM
Barrica do Châteauneuf-du-Pape (foto de Míriam Aguiar)

Por outro lado, o papel complementar das outras cepas é bem valorizado, mesmo que entrem em menor proporção. Aqui se dá ênfase à complexidade da constituição do vinho e as produções modernas focam na simplificação da linguagem para o consumidor. Assim, o mesmo corte GSM pode existir em outras partes do mundo sem que o próprio consumidor se dê conta, já que se o vinho tiver presença majoritária da Grenache, ele seria apontado como monovarietal.

No Rhône Sul, a Grenache impera em boa parte dos cortes, mas cada DOC exige uma proporção mínima de uso desta cepa nos cortes. Em Châteauneuf-du-Pape são permitidas 13 uvas nos cortes e não há imposição para as proporções, embora a própria quantidade de Grenache plantada (mais de 70% da superfície) implique por si só sua priorização, seguida pelas Syrah e Mourvèdre.

Na área da DOC Lirac, é obrigatório usar um mínimo de 40% de Grenache nos cortes e, em Gigondas, a Grenache tem a proporção máxima predeterminada em 80%. Mas quem fala mais alto é a DOC, que pode apresentar microclima e solos diversificados. Châteauneuf-du-Pape, por exemplo, apoia a sua qualidade em grande parte pela composição de solos com grande presença de seixos, que otimizam a maturação da Grenache, cepa de maturação tardia.

Quando se vai para o Rhône Norte, a única uva permitida é a Syrah – pois as outras uvas, embora nobres e complementares na constituição da qualidade dos vinhos, não amadureceriam bem em seu clima semicontinental. Só a Syrah e algumas uvas brancas seriam capazes de amadurecer bem em seu território de latitude e altitude mais altas. O modelo GSM está presente, no entanto, em muito mais regiões, a começar pela Espanha, país de origem das uvas Grenache (ali chamada de Garnacha) e Mourvèdre (ali denominada Monastrell).

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